quarta-feira, 5 de setembro de 2007

TRADUTOR TRAIDOR

http://negativoonline.com/tradutor.htm

Kurosawa e o Tradutor Traidor
Antonio Francisco Carpanez

Diz a Bíblia que até os anos zero mil e zerocentos antes de Cristo toda a humanidade falava a mesma língua. Não se viam placas como esta pregadas nos postes:

"Damos aulas de sumério (básico e adiantado). Saia conversando em 6 semanas. Mesmo preço na minha ou na sua cabana. Material incluso: duas pedras polidas tamanho A4 e um cinzel para anotações".

Ou:

"Mande seu filho para um estágio na Babilônia, bem próximo aos Jardins Suspensos, em selecionadas malocas de família. Ele vai voltar falando fluentemente o babilonês, tão útil nos dias de hoje para um futuro promissor no comércio. Preço irrisório: 200 bolinhas secas de cabrito (10% de desconto à vista), com direito a transporte em modernos camelos e estadia com refeições".

Mas um belo dia, uns apaziguados do rei da Mesopotâmia, em conluio com um remoto antepassado do Odebrecht, resolveram construir um prédio tão alto que chegasse ao céu. Mal comparando, mais ou menos como o “Fura-Fila” do Pitta – coisa inútil, um prédio tão alto num lugar onde havia tanto espaço na horizontal. Superfatura aqui, suborna ali, conta fantasma no exterior (Banco Safra – Assíria Branch), CPI que não puniu ninguém, aquilo de sempre, até que Jeová ficou brabo (por que ele anda tão apático com suas criaturas hoje em dia?), falou e disse:

- De hoje em diante não mais vos entendereis, estou inventando um monte de línguas e dialetos prá confundir-vos. Vós ireis ver o que é bom...

E virou mesmo uma baita confusão. O cara saía de sua aldeia para comerciar e passava o maior sufoco para fazer o possível freguês de suas peles de carneiro entender que elas eram coisa fina (Taiwan ainda não existia), o pêlo não soltava, eram facilmente laváveis – e que o preço era o melhor da Mesopotâmia.

E, na hora de comer, já pensou quanta mímica e grunhidos prá conseguir um McLagarto bem passado, um suco pequeno de maná (pouco gelo, please), bastante cebola e três saquinhos de ketchup?

Deus caprichou mesmo, virou aquele inferno. Foram se formando países, cidades-estado, colônias e, já que era prá bagunçar, cada um passou a querer ter sua própria língua. Mesmo dentro de um país aparecia um grupo de engraçadinhos e ia logo inventando dialetos, língua do P, letras fricativas, lábio-dentais, palatais, anasaladas, o diabo.

E quem se aproveitou dessa situação? Assim como os advogados (já há algum tempo) e os pastores (mais recentemente) estão se espalhando ameaçadoramente, foram aparecendo, quem? quem? Os tradutores e os professores de línguas.

Não tinha jeito, tinha que saber, além da língua nacional, pelo menos mais uma. A mãe Ostrogoda passava a mão na cabeça do ostrogodinho de 12 anos e dizia:

- Filhinho, a sua professora me disse que você está bem de ostrogodês, mas sabe a língua toda atrapalhada que esses malditos romanos falam? Teu pai e uns amigos estão tentando acabar com esses imperialistas, mas a gente tem que ser prático, queridinho. Tá certo, é uma língua complicada, tem uma tal de declinação, caso ablativo, genitivo, dativo, eu nem sei o que é isso. Eu até tentei decifrar umas coisas dum tal de Sêneca, mas não passei do primeiro papiro... Mas eles tão aí, dominando tudo, acho que nós vamos ter que agüentar o tal Latim por mais uns mil anos. Sem diploma desse curso você não vai arranjar emprego decente em lugar nenhum. Escuta o que a mamãe está dizendo...

E olha que da Antiguidade até poucos séculos atrás o contato, a troca de dados culturais entre os povos, era coisa rara. Sem Internet, sem Airbus, sem Sedex, sem satélite, a interação entre culturas era bem mais difícil. Já imaginaram o sacrifício que o Marco Pólo teve que fazer prá conseguir a receita de um bom macarrão do imperador chinês?

Os Cruzados, sabidamente, não tinham a intenção de praticar interação cultural, mas fizeram isso sem querer. Eles atravessaram a Europa uns pares de vezes para piedosamente enfiar o cristianismo na cabeça dos incréus, nem que fosse para rachá-los ao meio com aquelas enormes espadas. E os muçulmanos também não eram de levar desaforo: invadiram a Península Ibérica, responderam as espadadas com cimitarradas, mas pelo menos alguma coisa de bom sobrou desse “encontro cultural”: nós adotamos milhares de palavras copiadas fielmente ou adaptadas das línguas árabes. É por causa deles que nós hoje comemos alface, acelga; adoramos um álcool destilado de alambique; a maioria dos garotos detesta álgebra; fazemos uma fezinha no camelo; tomamos xarope prá curar resfriado.

Tentativas de reverter a síndrome da Torre de Babel houve muitas. Uma das últimas foi a de um médico polonês, que criou o Esperanto, uma utópica língua universal que andou patinando do fim do século 19 até meados do 20, e que teve um destino trágico: um dia ela (a tal língua) ia passando pela calçada do prédio de uma editora de dicionários quando lhe caíram por cima da cabeça três toneladas de Oxfords de 1.350 páginas.

(Bem, depois dessa introdução recheada de idiotices histórico-geográfico-étnico-lingüístico-canônico-gastrônomo-mercadológias, é preciso começar a discorrer sobre o artigo que nos obrigaram a escrever. Lá vai):

Um escritor italiano que teve um livro mal traduzido berrou um dia: “Tradutori, traditori!”. Ele foi um pouco duro com esse pessoal, afinal a maioria deles ganha mal. E mesmo os poucos que faturam vivem cercados de todos os lados por armadilhas lingüísticas, algumas transponíveis com um pouco de suor e de imaginação, mas freqüentemente um beco sem saída.

No cinema e na TV fica ainda mais difícil. Um legendador vai traduzindo de olho no tempo da cena. Se o diálogo original é rápido, ele tem que resumir, porque não dá para transcrever tudo o que o personagem diz. Tem também as peculiaridades de cada língua, a gíria, as abreviações (americano adora chamar laboratory de lab, Prisoner Of War de POW, Chief Executive Officer de CEO). E tem mais: os falsos cognatos. Quando o galã francês sussurra na orelha da gatinha (ou da coroa, porque coroa francesa também é muito assanhada): “Je veux t’embrasser”, ele está querendo mesmo é dar uma beijoca na boquinha dela. E as expressões idiomáticas: quando a moça olha languidamente pela janela e diz que “c’est l’heure du loup”, ela não está dizendo que tem um lobo rondando o quintal, mas sim que a noite vem caindo.

E os trocadilhos, os jogos de palavras. No filme “Era Uma Vez no México”, o Johnny Depp atiça os brios do Antonio Banderas, que interpreta um mexicano: “Are you a Mexican or a Mexican’t? Mais uma engraçada brincadeira verbal em inglês que murcha como balão de gás na hora da tradução.

Tem um tipo de programa muito popular na TV. São as sitcoms, essas comédias que o canal Sony, p. ex., exibe – “Seinfeld”, “Married With Children”, “Friends”, “The Nanny”. Os criadores desses programas são uns gênios, por conseguirem enfiar no texto uma piada a cada 30 segundos. E o tradutor sofre o diabo para acompanhar com as legendas. É um trabalho de Hércules tentar passar a graça original da piada, do trocadilho, substituir uma frase que se refere a algo muito regional por outra que o público estrangeiro entenda. Para contornar isso, algumas emissoras partem para a dublagem, que raramente é bem sucedida. Dublar a Nanny ou o Robim Williams é praticamente impossível. Só me lembro de um dublador que recebeu elogios até do personagem original – foi o falecido Borges de Barros, que por muitos anos fez a voz do malvado – e cômico – Dr. Zachary Smith da série “Perdidos no Espaço”.

O diretor Hakira Kurosawa é quase uma unanimidade, mas ele faz parte do time dos gênios cujas obras-primas, na hora da legendação, descoram como camiseta vermelha comprada no camelô. Típico exemplo é seu último filme: “Madadayo”. Conforme a Wikipédia:

“O filme é baseado na história real do professor Uchida Hyakken, que se aposentou depois de 30 anos lecionando literatura alemã para se tornar escritor. Com grande carisma e humor peculiar, conquistou o respeito e a amizade de seus alunos na forma de comemoração: todos os anos, no dia de seu aniversário, era comemorado o Madadayo...”

O título é emprestado de uma brincadeira infantil, o nosso esconde-esconde. O japonesinho que “bate cara” conta até vinte e grita para os que estão se escondendo: “Mada kay?” (pronto?). E os meninos: “Mada dayo!” (ainda não!).

Continuando a sinopse:

“... no dia de seu [do professor] aniversário, era comemorado o Madadayo, quando os alunos perguntam ‘Mada kay? ’ (Pronto?) [Já está na hora do senhor morrer?], e ele, depois de [entornar] uma imensa taça de cerveja, respondia ‘Mada dayo!’(Ainda não!) significando que seus alunos teriam que ‘agüentá-lo’ por mais um ano”.

Coitado do tradutor, ele deve ter feito o que pôde, mas quem não conhece bulufas de japonês fica entreabrindo aquele sorriso amarelo do começo ao fim do filme, tentando entender por que os ex-alunos ficam o tempo todo rolando no chão de tanto rir das piadas do espirituoso professor.

Então, fica combinado assim: quem ainda não viu “Madadayo”, não vá vê-lo no cinema. Nada disso. O negócio é alugar o filme, sentar no sofá com o controle remoto na mão para ficar dando pausa e esperar que o japonês que você contratou tente traduzir os diálogos com a graça que o original deve ter...

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