terça-feira, 16 de outubro de 2007

SAÚDE: AS HEPATITES VIRAIS NO BRASIL COMO ILUSTRAÇÃO DA ASSISTENCIA FARMACÊUTICA DE ALTO-CUSTO NO SUS



AS HEPATITES VIRAIS NO BRASIL COMO ILUSTRAÇÃO DA ASSISTENCIA FARMACÊUTICA DE ALTO-CUSTO NO SUS
Raymundo Paraná

As Hepatites B, C e D são endêmicas no Brasil, possuem distribuição heterogênea e se constituem nas principais causas de mortalidade na Amazônia Brasileira, dentre as doenças infecciosas. As Hepatites B e Delta na Amazônia podem se manifestar de forma grave na fase aguda ou crônica. Este aspecto é particularmente observado na Amazonia ocidental, onde o contágio se dá na fase tenra da infância e os adultos jovens e adolescentes já padecem. Já a Hepatite C tem distribuição mais homogênea. Sua prevalência varia de 1 a 1,5% nas capitais brasileiras, todavia esta prevalência parece muito menor em áreas rurais ou cidades de menor complexidade urbana. Dados preliminares apontam, mais uma vez, para a Amazônia ocidental brasileira como região de elevada endemicidade para este vírus.

Em 1994 o Dr. Edwin Castilho, infectologista de Brasília, então responsável pelas hepatites de transmissão hídrica, quebrou o silêncio do Ministério sobre as hepatites virais num país que tinha a expectativa de 3 milhões de portadores dos Vírus B, C e D. Dr Castilho iniciou o projeto Caravana da Hepatite para capacitar a vigilância epidemiológica dos locais mais distantes. Fomos ao interior da Bahia e Sergipe. Posteriormente fomos a Roraima e Campo Grande, contudo não havia apoio expressivo por parte do ministro para a consolidação deste projeto.

Após este período foram quatro anos de quase absoluto silêncio, até que um canal do Ministério da Saúde foi aberto através do Dr. Eduardo Hage no CENEPI, então Centro Nacional de Epidemiologia. Em seguida o Dr Jarbas Barbosa se sensibilizou e criou uma comissão técnica para avaliar o programa de tratamento, assistência e vigilância às Hepatites virais.

Inicialmente este programa estava ligado ao CENEPI, mas no momento em que ganhou visibilidade passou a ser disputado por outros setores ministeriais como a Secretaria de Assistência à Saúde e a Secretaria de Políticas de Saúde, então chamadas SAS e SPS. Nesta época, o Ministério da Saúde ganhava expressivo prestígio pelo mundialmente reconhecido programa brasileiro de DST/AIDS, mas pecava com absoluto silêncio sobre as Hepatites Virais, cuja estimativa de mortalidade chegava a números dez vezes superiores ao da AIDS.

Sensibilizado com a situação das Hepatites Virais no Brasil, particularmente no seu estado (Acre), o Senador Tião Viana pediu ao ministro atenção ao tema. Um pouco mais adiante, as ONGs e grupos de apoio aos portadores de Hepatite se organizaram e passaram a pressionar, bradando por um Programa Nacional de Hepatites Virais, espelhado no exitoso programa DST/AIDS.

A partir deste momento as Hepatites Virais entraram definitivamente na agenda ministerial, todavia existia forte discussão interna a respeito de qual setor abrigaria o programa. Finalmente, a SPS apadrinhou o esboço do programa, sob a coordenação do Dr Antonio Toledo. Por sua vez, Dr Toledo criou uma comissão técnica para consolidá-lo, porém outros setores ministeriais fizeram o mesmo, gerando uma espécie de “Babel das Hepatites”.

Retirado do CENEPI e sangrado na SPS, a SAS assumia o arremedo de programa e a paternidade de uma Portaria Ministerial com uma posição equivocada de distanciamento das ONGs e das Sociedades Brasileiras de Hepatologia e Infectologia. Este fato gerou conflito através da descrença da sociedade e do afastamento das fontes produtivas e formadoras de opinião. Perdemos precioso tempo. Já em 2002, com a criação da Secretaria de Vigilância à Saúde (SVS), sob a coordenação do Dr. Jarbas Barbosa, o programa foi consolidado.

A despeito de ter um orçamento reduzido se comparado ao DST/ AIDS, o programa foi se firmando progressivamente. Assumiu a sua coordenação a Dr. Gerusa Figueiredo. Iniciou-se uma aproximação com a sociedade civil, incluindo ONGs e sociedades de especialidades médicas que lidam com as Hepatites Virais.

Como estamos hoje, avançamos muito, apesar de sabermos da necessidade de avançar muito mais. O Brasil é desigual e muito difícil para um gestor central. Quando não há reverberação nos estados e nos municípios não há como enfrentar um problema tão grande como as hepatites virais no país. Infelizmente, ainda estamos longe do ideal, mas temos hoje Biologia Molecular, Biopsia Hepática e milhares de pacientes em tratamento, na sua maioria concentrados no Sul e Sudeste.

Na Amazônia foram criados os pólos do Acre e de Rondônia. O Senador Tião Viana conseguiu criar, em cooperação com a Universidade Federal da Bahia (UFBA), uma pós-graduação em Medicina que culminou com a implantação de um pólo gerador de conhecimento neste tema no Acre e em Rondônia. Contou com a colaboração expressiva do Prof. Tavares Neto, atual diretor da Faculdade de Medicina da Bahia.

Em 2005, o Programa Nacional de Hepatites Virais iniciou seu projeto de capacitação de profissionais da saúde no tema. Capacitou médicos do Norte/Nordeste e Centro-Oeste, os quais têm menor acesso aos programas de capacitação. Implementou-se a rede Nacional de Biologia Molecular e fomentou-se maior facilidade para estudo histopatológico do fígado, mas os problemas ainda assim continuam. Há carência de patologistas no país, principalmente patologistas de fígado. Há também reconhecida carência de médicos habilitados para Biopsia hepática transcutânea, forma mais simples e barata de se obter um fragmento Hepático representativo. Sem a Biopsia não se trata o paciente na rede pública.

Já a Biologia Molecular para a Hepatite C foi implementada nos LACENs, porém depende de forte interação entre gestores estaduais e municipais com o CGLAB no Ministério da Saúde. Nem sempre isso acontece, gerando desabastecimentos momentâneos. No caso da Hepatite B o problema é ainda maior, pois não existem KITs comerciais registrados no Brasil. Numa luta quixotesca o PNHV disponibiliza de quando em vez alguns KITs, através de convênios específicos, mas não pode fazê-lo regularmente sem um KIT comercial registrado no Brasil e sem um teste nacional validado.

Temos hoje no Brasil a droga LAMIVUDINA, cuja chance de resistência alcança 70% em quatro anos de uso. Por ser barata, num primeiro momento, além de ser muito bem tolerada, disponibilizou-se esta droga aleatoriamente pelo país sem que a rede de biologia molecular fosse construída para rastrear a resistência. Droga barata, segura inicialmente, foi muito sedutora e passou a ser utilizada em larga escala no país. Hoje pagamos alto preço por este “descuido”, pois temos uma legião de pacientes resistentes, progredindo a doença hepática, sem chance de diagnóstico na rede pública, exceto para pacientes que possam pagar pelos exames ou tenham saúde suplementar. Mesmo assim, a desatualização da portaria ministerial não permitiu incorporar as drogas de resgate aos pacientes resistentes. Situação lamentável. O resultado disso é a elitização do sistema de assistência farmacêutica.

Estes entraves, aliados à pletora dos ambulatórios públicos, fazem com que o paciente verdadeiramente usuário e dependente do SUS, não alcance os benefícios da assistência farmacêutica em igualdade de condições com os pacientes usuários da saúde suplementar. Por isso, os pacientes dos consultórios privados, acompanhados pelos seus planos e seguros de saúde, ganham mais fácil acesso à assistência farmacêutica de alto-custo num flagrante do vergonhoso abismo social no Brasil. Mais ainda, quebra-se o princípio da equidade, uma vez que a saúde suplementar gera o paciente para a assistência Farmacêutica do SUS.

Resta perguntar, isso é justo? Não estamos permitindo um ato predatório no SUS em nome da universalidade do nosso sistema único de saúde? Por que tudo cobramos do SUS e não demonstramos perplexidade por este fato junto à saúde suplementar? Vamos refletir... O Brasil adota a saúde suplementar como vários outros países desenvolvidos e em desenvolvimento. Para exemplificar, tomaremos os Estados Unidos, economia mais potente do mundo, além do México e da Argentina, estes mais próximos da realidade brasileira. Pois bem. Nestes países, em todos eles, a saúde suplementar arca com o tratamento de alto-custo, enquanto a saúde pública se exime deste ônus. Não defendo este modelo. Ao contrário, considero o SUS o maior programa de inclusão social do mundo. Por este motivo temos que preservá-lo, dando limites, regulamentação, protegendo-o dos ataques predatórios da corrupção, assim como dos vieses da sua utilização, como este que acabo de relatar.

O aumento exponencial dos gastos com a assistência farmacêutica acaba comprometendo outras ações igualmente importantes como a vigilância epidemiológica, a educação em saúde e a prevenção. Se este sistema trava na assistência farmacêutica e se a assistência farmacêutica está servida prioritariamente aos usuários da saúde suplementar, algo está errado.

Por que não enfrentamos este viés ao invés de cobrarmos, freneticamente, a ampliação dos serviços do SUS? Por que não nos damos conta da necessidade de ajustes e correções de injustiças como esta?

Possíveis soluções gestores estaduais e municipais se fazem mister a sensibilização e o compromisso dos gestores com o PNHV. A criação dos programas estaduais de Hepatite Viral, conforme recomendação da Portaria ministerial 863/02, deve ser implementada imediatamente. O mesmo para os municípios de maior porte. Este ato permitirá ampla interlocução com o PNHV, além de outros setores ministeriais envolvidos no tema.

Paralelamente, a implementação de uma comissão técnica estadual e municipal (municípios maiores), baseada em critérios técnicos e nunca políticos, consolidará os programas e promoverá a credibilidade perante a sociedade. Abertura de leitos para Biopsias Hepáticas e treinamento de médicos, mormente médico-residentes, para a realização do procedimento pelo SUS. Capacitação dos LACENs em biologia molecular. Da SAS-Ministério da Saúde, correção dos valores da tabela de Biopsia hepática e da histopatologia. Os valores atuais pagos pelo procedimento da Biopsia, assim como pelo estudo histopatológico, não estimulam no jovem médico a vontade de se habilitar na realização do procedimento, tampouco os estimula a abraçar a especialidade da Patologia.

No Brasil há reconhecida carência de patologistas, ausentes em mais de 2/3 dos municípios. Este aspecto não atinge só aos portadores de hepatite viral, mas a todos os usuários do SUS. Caberá também à SAS cobrar do PNHV e, sobretudo, da Secretaria de Ciência e Tecnologia, a atualização, no mínimo, anual dos protocolos envolvendo os medicamentos de alto-custo.

Juntamente com o DECIT, criar uma rede de consultores Ad Hoc para responder as demandas não contempladas nos protocolos atualizados, ou ainda, a casos pontuais que fujam as regras dos protocolos.

Da SVS-Ministério da Saúde, manter assessoria técnica permanente, assim como interlocução com as sociedades Brasileiras de Hepatologia, Infectologia, Medicina Tropical e Patologia, como vem acontecendo. Provocar junto à Secretaria de Ciência e Tecnologia reuniões permanentes para avaliação de protocolos. Fomentar e abrigar como parceiros a sociedade civil organizada, através das ONGs e dos Grupos de apoio aos pacientes. Também cobrar o mesmo tratamento dispensado ao Programa DST/AIDS.

Da Secretaria de Ciência e Tecnologia-Ministério da Saúde, agilizar o processo de reavaliação dos protocolos. Não é mais possível aceitar a desatualização dos protocolos de Hepatite B e C, muito menos a ausência de protocolo para Hepatite D. O PNHV já cumpriu a sua parte, mas resta agora avaliar a incorporação de novas drogas e tecnologias, já aceitas em todo o mundo, devido à evidência científica. Também a SECTI, através do DECIT, poderá organizar a rede nacional de pesquisa clínica, financiada por recursos públicos, para atender à demanda ministerial, mormente em estudos de “Custo x Benefícios” e “Farmacoeconomia”.

Acredito ainda que não será difícil para a SECTI/DECIT resolver com sabedoria o problema da Biologia molecular na Hepatite B. Hoje, no Brasil, sobra tecnologia para desenvolver um teste nacional com o Real Time –PCR. Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul já fazem testes moleculares para Hepatite B com RT-PCR. Falta validá-los externamente. Além disso, o produto do RT-PCR após a determinação da carga Viral, servirá para sequenciamento e detecção de cepas mutantes do VHB e também para rastrear resistência a medicamentos.

Um edital para unir estes grupos numa rede será de muita valia para o SUS, não só por resolver a demanda da carga viral, hoje crucial para tratar pacientes com hepatite B, assim como para diagnóstico de resistência a medicamentos. Este aspecto ajudará na redução de custos no manejo de pacientes com resistência a antivirais e doença hepática avançada.

Da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Enquanto a lei de saúde suplementar no Brasil não muda em direção ao que acontece nos países vizinhos, não temos como responsabilizar a saúde suplementar no tratamento das doenças de alto-custo. Trata-se de uma situação desconcertante, anômala, que exigirá da ANS e do Ministério da Saúde ações junto ao poder legislativo. Por outro lado, no que se refere ao Interferon – Peguilado, a ANS pode ter uma atitude imediata.

Trata-se de um medicamento registrado na ANVISA como de uso restrito a hospitais, conforme consta em bula. Ademais, este medicamento é coberto pelos planos de saúde para tratar outras patologias, portanto, pelo princípio da equidade, não pode discriminar doenças, mormente aquelas cujo registro está aprovado pela ANVISA. Mais ainda. Para utilizar esta medicação se faz necessária a avaliação prévia do paciente por profissional habilitado, a aplicação da droga e a observação posterior do paciente.

Este fato mais aproxima o Interferon-Peguilado dos medicamentos oncológicos, já cobertos pela saúde suplementar. Assim não é uma medicação ambulatorial como qualquer outra.

Do Ministério Público – Fazer cumprir a lei sem esquecer os aspectos da justiça. Isso passa pela cobrança a respeito da atualização dos protocolos ministeriais, assim como por coibir os abusos cometidos em nome do direito ao tratamento. Em nenhum país do mundo pode-se deixar a revelia esta questão, sob pena de fomentar uma indústria prescritora, longe da sustentação da medicina baseada em evidência, mas muito próxima da sedução dos interesses econômicos e individuais.

Quem abusos cometer, a denúncia na esfera competente, inclusive o CRM, deve existir. Por outro lado, deve também lutar pelo aspecto referido na saúde suplementar. O MP do Estado da Bahia tem um grande exemplo a mostrar, pois acolheu a queixa de vários usuários da saúde suplementar e tem corrigido parcialmente esta aberração no estado.

Por fim, só o trabalho conjunto de todos os segmentos e instituições resultará em avanços. Coloco-me inteiramente contrário à demonização ou santificação de qualquer um dos participantes deste processo, desde o Ministério da Saúde até a Indústria Farmacêutica, passando pelo Congresso Nacional. Estas atitudes maniqueístas não ajudam no processo e muitas vezes servem de pano de fundo para justificar atitudes de um ou do outro lado.

Considero que estamos construindo o SUS numa perspectiva de torná-lo viável no futuro, mesmo com o desproporcional crescimento dos gastos em relação ao crescimento do orçamento.

Raymundo Paraná é professor de Gastro-Hepatologia da Faculdade de Medicina da UFBA e livre-docente em Hepatologia Clínica da UFBA

Raymundo Paraná

Site Recomendado:

http://www.samuelcelestino.com.br/f_artigos.php

Nenhum comentário: