A VISÃO DOS DEDOS
Nos últimos anos, nota-se uma crescente preocupação com o hábito da leitura entre crianças e jovens estudantes. Há muito tenho lido reportagens e notícias que abordam esse tema de forma bastante comprometida com o público jovem e essa nova perspectiva para a educação.
No entanto, o que me chama muito a atenção não são as constantes e necessárias implementações para a democratização da leitura, mas, sim, o desconhecimento sobre como ocorre o acesso à palavra escrita por um mercado consumidor, que por ser a minoria, fica às margens dessa nova realidade. Trata-se de um público leitor: os estudantes que, além de ler, tocam as palavras e podem sentí-las com as pontas dos dedos, viajam nesse mundo de sensações e imaginações.
No último ano, porém, tive uma experiência que me trouxe muitas descobertas, dentre elas a que julgo de grande importância: a busca dos profissionais da educação pela capacitação em “grafia Braille”. Durante a formação de duas turmas de professores, verificou-se que o desconhecimento dessa forma pouco comum de "enxergar" as palavras, vem dando lugar ao enorme interesse e, acima de tudo, ao cuidado de encarar essa capacitação não apenas como complementação de um currículo, mas para multiplicar e compartilhar tais aprendizados em seu círculo de convívio.
Essa é uma das maneiras positivas de valorizar o público deficiente visual como membros de um grupo social, respeitando a diversidade como um aspecto da própria condição humana e buscar a consciência, levando até os superiores a necessidade de encará-los como pertencentes ao mercado consumidor, afinal, é a demanda que fará a diferença e colocará no mercado o material de que precisam.
Você provavelmente já ouviu falar em Sistema Braille, um Sistema de leitura tátil e escrita em relevo que leva o nome de seu inventor: Louis Braille. Ele nasceu na França (1809-1852) e perdeu sua visão aos 3 anos acidentalmente. Criou este método ainda jovem, porém, o reconhecimento e a adoção do código oficial só foi possível após sua morte. Expandiu-se lentamente pelo mundo, sendo o Brasil o 1º país da América Latina a trazer a escrita em relevo para a libertação educacional e cultural dos deficientes visuais.
Você já deve ter encontrado algum deficiente visual alisando ou tocando alguma página e ter ficado horas observando para descobrir qual seria o significado de tantos pontos amontoados em um pedaço de papel. Outras vezes, o espanto é inevitável, sendo comum escutar frases como: "Ele é um gênio!" Porém, não há nada de tão genial e nem existem poderes sobrenaturais para que aquele amontoado de pontos se transforme em palavras, sentenças, frases e tenha um significado coerente. Justamente por ser uma forma de leitura e escrita acessível a qualquer pessoa, seja cega ou vidente (quem enxerga), o Braille não é considerado uma "linguagem" própria dos deficientes visuais.
Para quem enxerga e para os cegos, as técnicas são distintas. Os primeiros utilizam o olho e elaboram uma comparação simbólica para cada sinal que representa letras, numerais, sinais de pontuação, código musical, matemática, química, física, entre outros. Já para o segundo grupo, o que ocorre é a substituição de um canal receptor, no caso a visão, pelo tato, caracterizando-se por um método analítico, pois será por meio do contato direto do "dedo" com a letra em relevo no papel que a leitura será possível. Analisa-se letra a letra, ao contrário da técnica globalizante empregada pela visão, captando registros diferentes simultaneamente. Essa fragmentação de leitura provocada pelo tato faz com qu e o processo de alfabetização Braille seja criterioso e utilize métodos e técnicas específicas, bem como a seqüência das etapas, como a de estimulação tátil, a fase preparatória de pré-leitura, escrita, leitura e utilização de materiais comparativos com a estrutura do Sistema em relevo.
Cabe lembrar, também, que os níveis e processos de aprendizagem variam para crianças – na fase de alfabetização, adultos na reabilitação e professores para dar suporte a um aluno em sala regular. O ensino deste método deve ser acompanhado por um profissional especializado e, durante a fase escolar, ensinado paralelamente aos conteúdos convencionais das disciplinas, pois o Braille, ao contrário do que muitos profissionais afirmam, não se constitui em uma metodologia de ensino, mas para o deficiente visual que está nesta etapa do conhecimento, corresponde ao próprio conteúdo.
Sua universalidade não retira o caráter lógico de sua estrutura e das normas técnicas, sendo somente possível representá-las com o uso do alfabeto em relevo, já que não existem correspondências em tinta para tais: distribuição lógica no papel, posicionamento de mãos, movimentos de dedos, representação de sinais e pontos. Os erros de ortografia que aparecem durante a escrita nem sempre são os mesmos erros da grafia em tinta, por exemplo, perfurando um ponto a mais na letra c, ela pode se transformar – dependendo da posição em que se encontra – nas letras m, f, d, e assim por diante. Isso reforça, ainda mais, que os processos de alfabetização em tinta e em Braille são distintos e quaisquer ações para tal padroniza&ccedi l;ão podem levar ao fracasso deste processo.
No entanto, a denominação acima de "genial" pode ser muito bem empregada quando pensamos que, há pouco mais de 200 anos, toda essa independência e autonomia estava limitada aos olhos de alguém que pudesse descrever ou ler os escritos para os cegos. Ficavam isolados do mundo, da literatura, da escolarização e até mesmo do convívio social, afinal, a linguagem escrita e lida tornou-se objeto essencial para o relacionamento coletivo.
Assim, para os deficientes visuais, o genial do Sistema está na liberdade proporcionada, na luz acesa para gerar um saber, um conhecimento, o compartilhar de idéias e significados, imagens e sensações capazes de construir e reconstruir, escrever e reescrever, num exercício constante, sua própria obra: a vida!
Luciane Maria Molina Barbosa é pedagoga especializada em grafia Braille; professora de Alfabetização/reabilitação pelo método Braille; capacitação de professores e palestrante. Para entrar em contato com a autora, mande um e-mail para braillu@uol.com.br. Acesse também o site: HTTP://intervox.nce.ufrj.br/~brailu
Caso queira enviar seu texto ou tirar alguma dúvida a respeito do Jornal Virtual, mande e-mail para priscila.conte@humanaeditorial.com.br
Até
Priscila Conte
quarta-feira, 19 de março de 2008
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